Sentença que condenou Léo Lins à cadeia é uma piada de mau gosto
Um pequeno ensaio sobre liberdade de expressão e humor
Talvez seja por almejar concorrer com o humorista Léo Lins na comédia que a juíza Barbara de Lima Iseppi, da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo, tenha emitido ontem sua sentença que o condenou a oito anos de cárcere e a pagar R$ 300 mil de indenização por “dano moral coletivo”.
Afinal, se não tivesse a aura sinistra de avanço do autoritarismo sobre expressão artística, a decisão arrancaria gargalhadas.
No terceiro parágrafo, a magistrada chama as piadas de Lins em seu especial “Perturbador”, publicado em 2022 no YouTube, de “comentários odiosos, preconceituosos e discriminatórios contra pessoas pertencentes a diversos grupos vulneráveis”. Comentários! O especial era conhecido por todos como um show de comédia, não uma palestra.
Piadas são comentários, ou seja, expressões sinceras de crença? A resposta curta é não. É uma surpresa que a doutora Iseppi não saiba disso. Como a surpresa é uma das receitas para o humor — no mínimo desde que o Pernalonga parou de cair de um precipício depois de tomar um “tônico antigravidade para lebres” — talvez seja piada da juíza. Ao menos é reconfortante pensar que seja brincadeira — gostaria que fosse.
A juíza tem outros momentos cômicos, como a insistência em chamar um show de comédia de “o feito”. Não chamar piada de piada, para parecer que é coisa séria, é a estratégia da decisão.
A juíza tem especial sucesso em ser engraçada com esta frase: “Com o devido respeito à profissão de comediante do réu e às pessoas que o admiram e acompanham como as testemunhas, a tese defensiva sobre o conteúdo das falas consistir em ‘humor’ não pode ser acolhida.”
Também neste trecho, a meritíssima deixa claras suas intenções de ativista: “A sociedade chegou em um ponto de evolução de direitos em que não se pode admitir retrocessos como a prática de crimes sob pretexto de humor.”
Menos engraçado é um trecho da sentença que deixa no ar que Léo Lins talvez recebesse outro tratamento caso não fosse branco. É um trecho de um parecer do Senado sobre a lamentável Lei Antipiadas (14.532/2023): o humor seria “subterfúgio retórico (…) de modo que oportunidades sociais permaneçam nas mãos de pessoas brancas”.
Para tentar provar que Léo Lins fala sério, a juíza inadvertidamente condenou o stand-up como um todo: “parece-nos claro não se tratar de personagem, mas sim da pessoa, o comediante ‘Léo Lins’ quem está ali a proferir os discursos”. Fica a dica para o Léo: da próxima vez, coloque uma fantasia, como fazia Paulo Gustavo ao se vestir de “Senhora dos Absurdos”.
Outra tentativa de demonstrar o “dolo” de Lins na sentença foi isolar as partes em que ele diz coisas como “essa piada pode parecer um pouco preconceituosa, porque é” e em que parece descrever situações de sua vida real.
Mas alegar estar falando sério é uma clássica ferramenta de meta-humor dos comediantes de stand-up. “Estou falando sério, gente, não estou brincando”, disse em um show de 2005 o humorista George Carlin (1937-2008), rei do stand-up. “Vocês estão gordos demais e burros demais para serem governados pela razão”.
A juíza ficaria chocada
Ainda bem que Carlin era americano e já morreu. Imaginem se essa juíza encontrasse sua “Lista de pessoas que precisam ser mortas”, em um dos especiais dele na HBO.
A lista incluía “pessoas que leem livros de autoajuda”; pais que pregam adesivos de elogio aos filhos em seus carros; homens adultos que chamam seu progenitor de “papai”; pessoas que usam o polegar e o mindinho para simbolizar um telefone enquanto descrevem uma ligação; cantores que não usam sobrenome, como Bono, Sting e Prince; “caras que voam ao redor do mundo em um balão”; e homens com nomes “ridículos” como “Todd”, “Dylan”, “Cameron” e “Tucker”.
Entre os métodos de execução, Carlin sugeria “levá-los para o meio do mato e estripá-los com uma colher de pau”, “escrever seu nome a lápis para uma visita súbita do anjo da morte”, “amarrá-los na cadeira e bater neles com martelos”, “estrangulá-los na frente dos filhos”, “amarrá-los numa maca e castrá-los com uma peixeira” e “bater neles com porrete e deixá-los sangrando à luz da Lua”. Também “desejava” que os ricos que viajam de balão fossem atingidos por um raio.
Repito: tudo isso é em um especial de comédia na HBO (Complaints & Grievances, 2001). Nenhuma autoridade do Judiciário americano sequer cogitou que Carlin estivesse falando sério. É que, no caso, o país é sério.
Negabilidade plausível é indissociável do humor
Uma resposta mais longa para a pergunta “piada é comentário?” está no livro “O elefante no cérebro” (2017, trad. livre), do engenheiro Kevin Simler e do economista Robin Hanson. O tema geral do livro é explorar os dois grandes conjuntos de motivações humanas: as conspícuas e sinceras, de um lado, e as egoístas, mas ocultas, do outro. Eles dedicam um capítulo ao riso, em que analisam a função do humor.
A função do humor tem seu lado misterioso, mas é claramente social. Faça o teste: você vai rir mais se assistir a uma boa comédia acompanhado do que sozinho. Nós não somos a única espécie que ri e o humor é parte de um comportamento quase universal entre os mamíferos: a brincadeira.
Se na brincadeira gatos e cachorros são capazes de moderar a força de suas mordidas, no humor o ser humano é capaz de moderar a força das afirmações, dando a seus emissores uma incontornável negabilidade plausível. O humor serve para expressar coisas que a linguagem séria é “precisa demais” para expressar, como dizem os autores.
A ambiguidade é parte indissociável do humor. É por isso que, enquanto o humorista Bill Burr, por exemplo, está certo em reclamar de críticos e censores declarando que “você não pode decidir que está na minha cabeça e que conhece a minha intenção — se estou brincando, estou brincando”, seus fãs também estão certos ao dizer que uma de suas qualidades é que ele é “brutalmente honesto”.
Piadas são assim: talvez sejam expressões completamente insinceras, talvez sejam afirmações sinceras contrabandeadas, e ninguém que não seja o emissor, nem mesmo uma juíza, pode bater o martelo para um lado ou para o outro.
A dúvida quanto à sinceridade do piadista é inevitável. E como diz o ditado célebre do direito: in dubio pro reo. Na dúvida, favorece-se o réu, ou seja, não se aplica censura.
A juíza e outros críticos do humorista Léo Lins estão livres para acreditar que suas piadas envolvendo vários grupos de pessoas são expressões sinceras de repulsa preconceituosa e injustamente discriminatória contra esses grupos. Só não estão livres para fingir que sua opinião é um fato demonstrado.
O humor limítrofe é a montanha-russa da comédia
Em um artigo publicado em abril pelo Royal Institute of Philosophy, o filósofo britânico Piers Benn oferece uma análise do tipo de humor praticado por Léo Lins, usando exemplos de seu próprio país.
“Os que apreciam esse humor gostam do potencial ultrajante e do suspense que ele cria”, escreveu Benn. “É o análogo cômico do frio na barriga do parque de diversões. Você sabe que é improvável que a montanha-russa lhe atire ao chão, mas há um medo e empolgação na ideia de que poderia”.
Ou seja, o gosto pelo humor politicamente incorreto pode ser comparável a inclinações particulares, como o gosto pelo heavy metal ou por filmes de horror. E a decisão da juíza equivale a fingir que a representação de mortes em obras de ficção audiovisual é incitação ao assassinato. Presumir que alguém é preconceituoso por gostar das piadas de Léo Lins é tão acertado quanto supor que alguém literalmente cultua o diabo por gostar de Iron Maiden.
“A comédia é uma forma de arte e a relação entre a boa arte e a moralidade não é clara”, refletiu o pensador, citando o talentoso escritor Oscar Wilde, para quem “nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética em um artista é um maneirismo de estilo imperdoável”. Ou seja, o artista trai a arte se tenta “subordiná-la a qualquer propósito moral, didático, social ou político”.
Se antes eram forças tradicionalistas radicais que perseguiam artistas por blasfemarem fazendo filmes como “A Vida de Brian” e “Jesus Cristo Superstar”, agora são os ativistas identitários que se elegeram intocáveis pelo humor e perseguem a blasfêmia contra o identitarismo.
Os antigos carolas que achavam que Jesus não tinha senso de humor e os novos carolas, que acham que piada é comentário, são mais parecidos entre si do que pensam. Chamou minha atenção a sigla para o Setor de Atendimento de Crimes da Violência Contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno de Pessoas da Justiça paulista, que impôs uma medida cautelar em Léo Lins que o proibia de trabalhar, derrubada pelo ministro André Mendonça. A sigla é SANCTVS, ou seja, “santo” em latim.
Este é o caminho natural das coisas: que o chicote troque de mãos na alternância de poder dos caminhos convolutos da História. Mas em uma democracia liberal, precisamos jogar o chicote da censura no lixo.
Publicado originalmente no Portal Claudio Dantas.