Ditaduras deram sentenças mais leves para atos similares ao “perdeu, mané” em batom
Brasil está pior que Belarus e China em punir supostos delitos de palavras que abalam regimes

A injustiça avança no Brasil: a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos já foi alvo do voto dos ministros Flávio Dino e Alexandre de Moraes pela condenação à prisão por 14 anos quando já havia passado dois anos preventivamente presa, longe dos dois filhos.
Concretamente, tudo o que Débora fez foi pintar com batom, na estátua “A Justiça”, a frase do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, que por si só prova a parcialidade da corte: “perdeu, mané”, dita por ele em 2022 a um apoiador de Bolsonaro em Nova York.
O ministro Luiz Fux pediu vistas sobre o processo, atrasando a decisão final da turma. Na avaliação do jurista André Marsiglia, não é um recuo, mas “uma estratégia para tirar o assunto da mídia e o votar depois na sombra”.
Para dimensionar a desproporção da punição buscada por Moraes e Dino, vale observar como regimes notoriamente autoritários julgam casos semelhantes ao de Débora Rodrigues. Este contraste não deixa o Brasil com uma cara boa.
Valery Levaneuski
No Dia do Trabalhador de 2004, o engenheiro bielorrusso e líder de pequenos comerciantes Valery Levaneuski produziu um panfleto de convocação de protestos que dizia “Venha e diga não para quem passeia pela Áustria, esquiando por lá e vivendo bem às suas custas”. O alvo da crítica era o ditador Aleksandr Lukashenko, que de fato estava gastando dinheiro em viagem à Áustria. As despesas eram incompatíveis com seu salário de presidente.
Levaneuski foi condenado pelo crime de “insulto público ao presidente” e passou dois anos na cadeia, sem direito à liberdade condicional ou anistia. Ele foi julgado na própria cela de prisão preventiva. Lukashenko ainda é o ditador de Belarus.
Maria Kolesnikova
A flautista bielorrussa Maria Kolesnikova é outra vítima do regime de Lukashenko. Ela foi líder de campanha do candidato Viktar Babaryka nas eleições de 2020. Babaryka teve o registro de sua candidatura barrado pelo regime e ele foi detido em julho daquele ano. Não se deixando intimidar, Kolesnikova articulou uma tripla aliança entre as chapas de oposição. Quando Lukashenko alegou ter vencido com 80,1% dos votos, a oposição acusou fraude, com apoio dos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e oito países da União Europeia. Protestos eclodiram pelo país e foram brutalmente reprimidos pelo ditador.
Maria Kolesnikova foi sequestrada pelo regime em 8 de setembro. Houve uma tentativa de deportação forçada, denunciada pela Ucrânia. As emissoras de TV controladas pela ditadura a acusaram de tentar fugir do país. Mas a BBC em língua russa conta outra história: em protesto, ela rasgou seu passaporte e atirou os pedaços pela janela de um carro, obrigando os ucranianos a recusarem sua entrada. Dias depois, ela foi transferida para uma prisão em Minsk. O Comitê Investigativo de Belarus acusou a flautista de “ações para prejudicar a segurança nacional bielorrussa”.
Agora, a parte mais semelhante ao caso de Débora Rodrigues: Kolesnikova foi indiciada por “conspiração para golpe de Estado de forma inconstitucional” e participação em “estabelecer e liderar uma organização extremista”. Em 6 de setembro de 2021, depois de um ano em prisão preventiva, a bielorrussa foi condenada a 11 anos de prisão. Uma sentença mais leve do que a emitida por Moraes e Dino contra Débora. A ditadura de Belarus foi mais leniente que os dois ministros do STF, com alguém sobre quem havia mais indícios de envolvimento em política do que sobre a cabeleireira.
Chung Man-kit e Chu Kai-pong
Em setembro de 2024, uma corte de Hong Kong condenou Chung Man-kit, homem de 29 anos, por “escrever palavras com intenções sediciosas em múltiplas ocasiões na parte de trás de assentos de ônibus públicos”.
As palavras “criminosas” escritas foram o slogan de protesto “Liberdade para Hong Kong, revolução dos nossos tempos” e “Independência para Hong Kong, a única saída”. A ditadura da China impôs sobre Hong Kong em 2021 uma lei de segurança que alega que essas meras palavras constituem em si uma incitação à secessão. Raciocínio parecido com o de Moraes, que vem alegando que meras palavras e protestos de 2022 foram “atentado violento” contra o “Estado democrático de direito”.
Mais uma vez, um país que em tese seria um regime menos aberto que nossa “democracia pujante” foi mais leniente: Chung foi condenado a 10 meses de prisão. Não mais de uma década, como está acontecendo por aqui. A sociedade “cairia no caos” se as palavras de Chung não fossem punidas, alegou o juiz da sentença, Victor So.
O juiz condenou outro homem, Chu Kai-pong, 27 anos, a 14 meses de prisão pelo mesmo “crime”. Neste caso, o cidadão apenas usou uma camiseta com o mesmo slogan “Liberdade para Hong Kong”.
Até o final do julgamento de Débora, o Brasil poderá se vangloriar de integrar a mesma lista de regimes autoritários que governam Belarus e Hong Kong.
Publicado originalmente no Portal Claudio Dantas.